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A AUTONOMIA : ITINERÁRIOS PARA A REFLEXÃO

Beatriz Trueba

INFÂNCIA EN EUROPA, N. 28, MAIO - 2015


Tradução Livre - Tais Romero


O presente artigo tem a intenção de oferecer algumas pautas de reflexão e revisão em torno ao unanime valor concedido a autonomia como princípio educativo na Educação Infantil. Enfoques para olhar por ângulos diferentes, conceitos fixados e também para contemplar a autonomia a partir de facetas diversas, em coerência com uma determinada imagem de infância, tais como a superação do termo desde um ponto de vista físico, o valor da estima e a recuperação do tempo como valor.



“Me deixa fazer sozinho!”, a fome de autonomia somente se consolida, se não implica ficar desprotegido. ¡Para isso estamos os professores! Que necessário é que nos ajudem sabendo que ensinar é deixar aprender!” Vicenç Arnaiz



Sem dúvida as professoras e professores de Educação Infantil em todos os âmbitos e geografias, coincidimos de forma unânime em considerar a autonomia como um dos grandes princípios educativos. Porém é curioso ver como tendemos a acreditar que uma criança pequena é mais autônoma na medida que alcança e supera habilidades e destrezas de ordem física, tais como comer sozinha, amarrar os sapatos, vestir-se sem ajuda, ir ao banheiro ou lavar as mãos… Paramos um instante para questionar essa ideia tão majoritariamente aceita: somente é isso a autonomia? Como se adquire? Por que se concebe estas metas como objetivos a cumprir? Qual é a sua finalidade? Seguramente as primeiras ideias que vem a cabeça tem que ver com o evidente : o importante que é aprender a fazer-se maior, saber mover-se no mundo, ou ensinar a ter habilidades para não depender de outros.

Sem ânimo de negar a importância de tais aquisições, proponho um enfoque que questione estas verdades assumidas para colocá-las em juízo, e estabelecer algumas pautas para a reflexão e aprofundamento:


QUANDO SER MAIOR NÃO É UMA META

Às vezes existe tanta urgência, tanta pressa para que as crianças consigam estas destrezas o mais rápido possível, que sua aquisição se assemelha a uma série de obstáculos a superar. Reflexos de imagens fragmentadas onde as crianças aprendem um triste adestramento. E tudo isto para que? Quem sabe por um impulso oculto em nós, latente em nosso entorno, não verbalizado, inclusive inconsciente, de que as crianças precisam ser capazes de fazer todas estas coisas o mais rápido possível para assim poder superá-las e dedicar o tempo ao que é escolar e tradicionalmente considerado como “o importante”, as tarefas mais difíceis? Quem sabe por ser criança e tudo o que comporta seja também algo a esquecer o quanto antes em prol de uma imagem que é mais perfeita quanto mais imita um adulto? De onde vem esta obsessão, este desejo repetido por toda parte em nossa sociedade de correr “para ser maior”?


UMA IMAGEM DE INFÂNCIA

Basicamente tudo radica em uma imagem de infância determinada que é nosso alento e que nos anima a atuar de uma certa maneira.

De onde provém esta imagem oculta porém dominante, tão popular em nosso entorno? A que vemos em infames programas de TV, são crianças que participam de concursos, cozinhando, cantando, dançando, que imitam os adultos em suas expressões e atitudes, para deleite do grande público? Isto é o que em nosso entorno se considera crianças autônomas?

Por outro lado, também se observa a nossa volta, adolescentes superprotegidos, que desde crianças foram distanciados de qualquer situação de negação, frustração ou perda, que tudo foi dado de pronto e antes que necessitassem, que foi negado a eles a oportunidade desde o berço de fazerem algo por si mesmos, resolvendo por eles qualquer demanda, em um marco de superproteção, de desconfiança em suas verdadeiras capacidades; com graves consequências para o seu crescimento como pessoa.

São ambas situações, as duas caras de um mesmo problema: Nossa sociedade se balanceia entre falsas imagens do que é ser criança: parafraseando a Malaguzzi, bem se considera muitas vezes a criança incapaz, necessitada, dependente em tudo de um adulto, e em outras se pretende que seja um adulto antes do tempo.

É urgente e prioritário como profissionais tomar conciência sobre qual é a nossa imagem interna de infância, de criança, colocá-la a luz, para poder saber se nossas ações são coerentes com nossos pensamentos, a quem estamos dando voz quando atuamos habitualmente, às vezes impulsionados pela urgência ou de modo quem sabe pouco refletido…

Por isso convido a pensar sobre como se concebe e se aborda a autonomia: com as crianças, para as crianças e entre as crianças.

O estereotipo assumido, o que se dá por feito, é um dos piores inimigos da reflexão para a investigação sobre as belas palavras de Juan de Zabaleta, um notável escritor espanhol do século XVII: “Os que estão a luz pensam no que veem; os que estão no escuro só veem o que pensam.”


TER OPINIÕES PRÓPRIAS E ATUAR

Por outro lado a autonomia é um campo amplo, que não somente abarca terrenos materiais como também mentais e éticos.

Se consultarmos o dicionário veremos que se define autonomia como condição de quem, para certas coisas, não depende de ninguém e também com independência para reger-se mediante normas próprias. É portanto, um termo amplo que refere-se a ser capaz de governar-se a si mesmo e não pelos demais, ser independentes no plano físico, mas também ter opiniões próprias e normas de comportamento interiorizadas.

Constance Kamii investigadora e pedagoga de referência em uma escola piagetiana da Suiça, estabelece a diferença entre as três autonomias: física, intelectual e moral. Nos fala do construtivismo intelectual e ético, quando se geram ideias próprias e também normas éticas. Porque a autonomia física é importante mas, é necessário dar um passo a mais: também é autonomia intelectual e moral: ser capaz de expressar opiniões próprias e seguir as normas porque “nós acreditamos nelas”, as assumimos, ao estarem interiorizadas e não impostas pelo exterior, por temor ou por mera obediência.


“Minha neta, que acreditava em Papai Noel, nos dá um bom exemplo de autonomia intelectual. Quando ela tinha cerca de seis anos, surpreendeu um dia a sua mãe ao perguntar-lhe: Como é que o Papai Noel utiliza o mesmo papel de presente que o nosso? A explicação de sua mãe a convenceu somente por alguns minutos. Depois de pouco tempo voltou com outra pergunta: Como é que o Papai Noel tem a mesma letra do papai? Essa menina tem a sua própria maneira de pensar, e chegou a conclusões diferentes das que se esperava dela.

Constance Kamii: “Autonomy: The Aim of Education Envisioned by Piaget”, 1984, Phi delta Kappan, vol 6


Se trataria também de gerar opiniões críticas, respostas e iniciativas pessoais.

Poderíamos nos perguntar de que paradigmas obscuros e reacionários procede a ideia tão comum em nossa sociedade de que as crianças pequenas somente podem acessar os aspectos físicos de autonomia, mas não os intelectuais e éticos, como se esses fossem patrimônio do mundo adulto? Aprendemos com Loris Malaguzzi a reconhecer que essas expressões são a forma de uma ideia oculta baseada na ideia de uma criança inútil ou incapaz, sempre pobre e necessitada.

Ter a convicção interna de que as crianças desde pequenas podem e devem ser participantes ativas em pontos de vista, opiniões e pensamento crítico, é o princípio para uma autonomia em suas acepções mais profundas. E é nossa responsabilidade oferecer numerosas opções para seu desenvolvimento.

Situações cotidianas, como aquelas em que se criam normas de atuação contando com as opiniões de todos e são escritas em um painel para recordá-las, ou também quando no refeitório se dá opção de decidir entre uma comida ou outra de modo que os aspectos nutritivos sejam basicamente os mesmos, mas podem escolher entre formas distintas de comer, ou quando se decide com as crianças como abordar perguntas e projetos, quando se respeitam suas preferências e gostos, ou quando se oferecem situações abertas onde muitas escolhas sejam possíveis… Tem muitas e variadas situações que podem potencializar a autonomia ética e intelectual.

Tudo isso supõe uma mudança profunda no papel tradicional do professor, ao ser o professor um interlocutor nas opiniões com as crianças, que além disso incite ao intercâmbio de pontos de vista entre as próprios crianças e que as anime ter confiança em suas próprias ideias e iniciativas.

Somos pescadores de ideias, guias nos territórios da felicidade, incendiários de imaginação, observadores meteorológicos, descobridores de vidas, admiradores de gestos. Também nos fazemos de rede para quem “se joga”…” Vicenç Arnaiz

Porque definitivamente a autonomia em sua concepção mais ampla é um processo que começa na infância e prossegue ao longo de toda a vida.


SOMOS O REFLEXO DE QUEM NOS OLHA

Quando se observa o outro atuar, falar, pensar… esse outro está mediado pelo olhar que é observado. Sim, o olhar projeta positividade e confiança, sem dúvida as ações superam todas as expectativas e pode-se conseguir superar muitas barreiras, conquistas coisas maravilhosas que pareciam impossíveis. Do mesmo modo um olhar desconfiado ou negativo diante das posibilidades do outro, uma expressão ou gesto de desprezo ou indiferente, bloqueia, impede atuar com segurança e autoconfiança.

Numerosos estudos e investigações a respeito, defendem que um professor que olha e admira, com confiança e otimismo os seus alunos, criam grandes expectativas de êxito na autoestima, a aprendizagem para a vida e futuro, e isso inclusive a longo prazo, como um lindo canal de luz que se projeta mais adiante.

Respeito e confiança são mais que boas palavras: são forças poderosas, um motor que aciona o melhor de nós mesmos.

Quando olhamos uma criança com segurança e confiança positiva plena sobre sua capacidade, sobre sua inteligência e sua bondade, estamos potencializando sua autonomia física, intelectual e ética, através do impulso que dá este respiro e também, como não, a partir do respeito. E assim suas ações serão fortes, potentes, plenas e seguras.

Mas tudo isso precisa surgir com intensidade desde o nosso interior. Colocar ânimo nessa atitude não é um processo somente mental, mas sobretudo do coração. É uma condição inevitável e que deve ser sincera para que esse “olhar” de confiança se projete no outro muito além das palavras. É necessário aclarar em nossa

convicção e em nossa fé as grandes capacidades da infância, a partir da reflexão, mas também a partir da emoção.


A AUTONOMIA SE COZINHA EM FOGO LENTO

O melhor tesouro que nós adultos podemos oferecer as crianças é o tempo. Quando estamos convencidos que o importante não é chegar a uma meta, senão recriar-se nos processo, isso nós podemos e devemos sustentar com qualidade e com clareza, concedendo todo o tempo do mundo para que sua descoberta, sua conquista seja um ato de felicidade compartilhada, para que o erro não exista senão como caminho, para respeitar os tempos de cada criança, seus sonhos, seu modo pessoal e único de abordar os problemas e para que o adulto seja um acompanhante respeitoso.

Ao tomar consciência ativa do tempo roubado da infância, não podemos ser indiferentes. Vamos então em busca do tempo perdido.

A autonomia é uma receita que se cozinha em fogo baixo. É urgente atuar intencionalmente a favor da calma, dos tempos tranquilos. Elogio a lentidão, parafraseando a Penny Ritscher, movimento en prol de uma escola lenta, neste mundo com uma sociedade em crise, onde a escola pode se converter em um “oasis de calma e sentido comum”, superando a ânsia da produtividade, cultivando o prazer de pensar, falar e refletir juntos.

E isso será um tesouro para toda a vida.

Tomemos pois partido com ações conscientes a favor de uma longa infância para que possamos crescer como pessoas autonômas e livres e para entendermos melhor a nós mesmos e os sentimentos dos demais.


UM EXERCÍCIO DE LIBERTADE QUE SE PRATICA COM O EXEMPLO

E por último não devemos esquecer que unicamente poderemos transmitir uma autêntica autonomia desde exercício de nossa própria libertade e independência como pessoas e como profissionais.

Mostrar nossa personalidade real, ter critério para atuar com coerência entre nosso pensamento e nossas ações, não obedecer a padrões impostos desde o exterior, evitar ser a voz uniforme de outros através de materiais curriculares impostos e carentes de sentido, ser valentes para investigar em nossas profundas motivações, seguir o impulso de uma saudável trasngressão, que nos leva a colocar em questão inclusive nossas aparentes convicções… tudo isso pode ser além de um caminho de aprendizagem pessoal, umn padrão de conduta que mostra o caminho da liberdade das crianças com o que temos a sorte de compartilhar cada dia a vida.



Beatriz Trueba, 2015 Tradução livre: Tais Romero




BIBLIOGRAFIA


Arnaiz Vicenç – ¡Para eso estamos los maestros!, Es Diari, Menorca, 19 Dic 2014

De Zabaleta Juan – El día de fiesta por la mañana y por la tarde, 1654, Clasicos Castalia, 1983

Hoyuelos Alfredo – “La ética en el pensamiento y obra de Loris Malaguzzi” – Octaedro -Rosa Sensat, 2004

Kamii Constance : “Autonomy: The Aim of Education Envisioned by Piaget”, 1984, Phi delta Kappan, vol 6

Ritscher Penny – Elogio de la lentitud … en la escuela – Revista Infancia en Europa, El tiempo de la Infancia, Vol. 13.25, Rosa Sensat, 2014


Beatriz Trueba é professora de Educação Infantil e historiadora de arte. Trabalha em contato com as crianças tanto em contextos de educação escolar formal como não formal. Durante vários anos foi assessora pedagógica formadora de professores da Educação Infantil em Centros de Professores de Madrid. Ministrou numerosos cursos, conferências e coordenou oficinas de formação continuada. Seus temas de investigação gira em torno da organização dos espaços para a infância, talleres integrales, o jogo, os títeres e os livros pop-up como recurso educativo, a arte na infância, a Educação em Reggio Emilia, a programação por projetos e a criação de modelos didáticos coerentes. Tem diversas publicações sobre esses temas.


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